Ultraprocessados e risco cardiovascular: o que a evidência de coortes mostra e como orientar o paciente

27 de novembro de 2025

 

Os alimentos ultraprocessados tornaram-se parte dominante da alimentação moderna. Práticos, acessíveis e palatáveis, eles ocupam prateleiras e mesas em todo o mundo. No entanto, a crescente produção científica vem revelando um lado preocupante: quanto maior o consumo de ultraprocessados, maior o risco cardiovascular e mortalidade precoce.

 A coorte francesa NutriNet-Santé, publicada no BMJ em 2019 e complementada por novas análises em 2024 (BMJ+1), forneceu as evidências mais robustas até o momento sobre esse tema. Ao acompanhar centenas de milhares de pessoas por mais de uma década, os pesquisadores demonstraram uma associação direta e consistente entre o consumo desses produtos e o aumento do risco de infarto, AVC e doenças coronarianas.

O que os estudos de coorte revelam

A coorte NutriNet-Santé é um dos estudos prospectivos mais detalhados sobre nutrição e saúde já conduzidos. Ela acompanhou mais de 105 mil adultos franceses ao longo de dez anos, avaliando padrões alimentares e desfechos clínicos cardiovasculares. Os resultados mostraram que a cada 10% de aumento na proporção de ultraprocessados na dieta, o risco de doença cardiovascular aumentava em cerca de 12%.

Esses achados permaneceram significativos mesmo após o ajuste para fatores como idade, sexo, tabagismo, IMC e prática de atividade física — indicando que o efeito está ligado à qualidade intrínseca dos alimentos, e não apenas a hábitos gerais de vida.

A atualização publicada em 2024 confirmou essa tendência, reforçando que o consumo elevado de ultraprocessados está associado não só a maior risco cardiovascular, mas também a maior mortalidade geral e por todas as causas. O padrão alimentar mais protetor, por outro lado, é aquele baseado em alimentos in natura e minimamente processados, como frutas, verduras, leguminosas e grãos integrais.

De forma consistente, outras coortes internacionais — incluindo estudos conduzidos no Reino Unido, Espanha e Estados Unidos — replicaram resultados semelhantes. Isso confere à evidência um grau elevado de confiabilidade e relevância clínica.

Por que os ultraprocessados fazem mal ao coração

O termo “ultraprocessado” vai além do conceito de alimento industrializado. Ele se refere a produtos formulados com ingredientes artificiais e aditivos cosméticos, cuja função é imitar o sabor e a textura de alimentos naturais. Esses produtos são ricos em açúcar, gordura saturada, sódio e aditivos como emulsificantes e corantes, mas pobres em fibras, vitaminas e compostos bioativos.

No organismo, esse perfil nutricional gera um ambiente propício para inflamação crônica de baixo grau, resistência à insulina, dislipidemia e aumento da pressão arterial — mecanismos que estão na base da aterosclerose e das doenças cardiovasculares.

Além da composição química, há fatores metabólicos e comportamentais envolvidos. O consumo frequente de ultraprocessados altera a resposta de saciedade, levando ao aumento da ingestão calórica e ao ganho de peso. Esses produtos também impactam negativamente o microbioma intestinal, reduzindo a diversidade bacteriana e favorecendo processos inflamatórios sistêmicos.

Um aspecto emergente nas análises mais recentes é o efeito dos aditivos alimentares. Substâncias como emulsificantes e adoçantes artificiais estão sendo associadas a alterações metabólicas e à disfunção endotelial, sugerindo que os riscos vão além das calorias e nutrientes tradicionais.

A força da evidência e suas implicações clínicas

A força das associações observadas na coorte NutriNet-Santé é comparável à encontrada em estudos clássicos sobre tabagismo e risco cardiovascular. Ainda que os ultraprocessados atuem de forma multifatorial, o padrão de evidência é consistente e apresenta relação dose-resposta — quanto mais consumo, maior o risco.

Os pesquisadores do BMJ ressaltam que esses resultados não devem ser interpretados como condenação isolada de um alimento, mas como alerta para o padrão alimentar global. Dietas compostas por mais de 50% de produtos ultraprocessados — algo comum em países ocidentais — representam um cenário de risco populacional.

Do ponto de vista clínico, essa evidência traz implicações diretas para a prática médica e nutricional. Profissionais de saúde devem incluir a qualidade do processamento alimentar como um marcador essencial de risco. Isso significa ir além da contagem de calorias ou macronutrientes e considerar o grau de industrialização dos alimentos como variável relevante na prevenção cardiovascular.

A análise de 2024 também mostrou que substituir apenas 20% das calorias provenientes de ultraprocessados por alimentos frescos já reduz o risco cardiovascular em até 15%. Esse dado reforça que pequenas mudanças graduais podem gerar benefícios substanciais à saúde.

Como orientar o paciente na prática

Transformar evidência científica em orientação prática é o desafio central na clínica diária. Ao falar sobre ultraprocessados com o paciente, o foco deve ser educativo e realista. A primeira etapa é identificar o nível de consumo — algo que pode ser feito por meio de recordatórios alimentares simples ou listas de compras.

A orientação não deve ser de restrição total, mas de substituição progressiva. Incentivar o preparo de refeições caseiras, a leitura de rótulos e o reconhecimento de ingredientes artificiais são estratégias eficazes. Uma regra prática é evitar produtos com listas extensas de componentes que não seriam usados em uma cozinha doméstica.

O paciente também precisa compreender o impacto cumulativo. Um lanche industrializado ocasional não representa risco isolado, mas o hábito diário de substituir refeições por produtos prontos tem consequências metabólicas reais. Mostrar que cada troca conta — como substituir bolachas por frutas ou refeições prontas por pratos simples — é uma abordagem motivadora e sustentável.

Por fim, é essencial que o profissional de saúde atue como facilitador e não como fiscal. A educação alimentar deve respeitar o contexto social, econômico e cultural do paciente, oferecendo soluções viáveis dentro da realidade de cada um. A mudança de comportamento é um processo contínuo, e o apoio empático é o que transforma informação em ação.

Leia também: Inflamação e Intervenções Nutricionais: Como a Alimentação Pode Modificar Respostas Inflamatórias

Um caminho de volta à comida de verdade

Reduzir o consumo de ultraprocessados é mais do que uma escolha nutricional — é um retorno ao essencial. A ciência confirma que alimentos simples, naturais e minimamente processados protegem o coração e prolongam a vida.
Cada refeição é uma oportunidade de cuidar do corpo e do futuro. Escolher frutas em vez de pacotes, legumes em vez de molhos prontos e grãos em vez de farinhas refinadas é um ato de autocuidado que o coração reconhece.
Comer bem não precisa ser complicado. Precisa apenas ser real. E a saúde cardiovascular agradece cada passo nessa direção.

Referências:

  1. Cohort Study: Consumption of Ultraprocessed Foods and Risk of Cardiovascular Disease — NutriNet-Santé Cohort. BMJ, 2019.

  2. Updated Analysis: Ultraprocessed Food Intake and Cardiometabolic Health — A 10-Year Follow-Up from the NutriNet-Santé Cohort. BMJ+1, 2024.

Leia mais